terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Tirésias, sob um outro olhar - Solange Rebuzzi

Observações sobre Édipo e Antígona a partir de Hölderlin

1.

Conta a lenda grega que Tirésias foi ao longo da vida por ação dos deuses, sucessivamente, homem, mulher e homem outra vez. Posteriormente, novamente por ação divina, perdeu a visão. Em contrapartida, ganhou a possibilidade de adivinhar o (tempo) futuro como se fora uma outra forma de ver. Assim monta-se, de imediato, na cena de uma impossibilidade, uma outra cena; a de uma (im)possibilidade que carrega em si mesma um possível.

2.

Na tragédia Édipo Rei escrita por Sófocles, Tirésias se apresenta com alguma subjetividade. “Detentor da verdade divina, (ele) não perde a sua qualidade humana que se reflete no próprio modo como a verdade é transmitida ao rei” [2]. A tensão do diálogo do adivinho com Édipo, no qual ele vai revelando suas profecias aparece, portanto, carregada de irritação.

Rememoramos: durante a ação da tragédia (Édipo Rei), o rei procura ouvir algo que lhe esclareça porque o adivinho se fechara em silêncio, logo após o seu pedido de alcançar conhecimento. O adivinho, hoje reconhecido como aquele “que é simultaneamente um homem e um ser intermediário, que se situa, apenas em certos momentos, entre o mundo dos homens e um outro mundo”, [3] quando não responde ao pedido do rei de Tebas, é percebido como não querendo revelar a sua intuição divinatória. Édipo que procurava respostas para o estado de desamparo em que se encontrava o seu reinado depois da chegada da peste, diz a Tirésias: “Então tu, malvado dos malvados, tu que serias capaz de enfurecer uma rocha, não falarás?” [4]. O próprio Coro comenta esta afirmação, ao tentar conciliar Édipo e Tirésias:


A nós se nos afigura que as tuas palavras (de Tirésias) foram proferidas sob o império da cólera, mas também as tuas, Édipo.
E não é disso que carecemos, mas da melhor solução para o oráculo[5].

Na fala do Coro[6] percebemos que se pretende uma solução para o momento tenso que se apresenta ali. A atitude do Coro na obra comporta também uma pergunta, segundo Hölderlin, algo “que dá ao todo da tragédia seu equilíbrio, fazendo “adequadamente” ou convenientemente surgir seu sentido? [7] Édipo insiste buscando ouvir alguma verdade: “Ó Tirésias, que tudo conheces, o que foi revelado e o que é oculto. O que habita o céu e o que pisa a terra ! (...) Não nos recusarás, certamente, o presságio das aves ou outro caminho da profecia, se o possuis.” [8] E o rei pede chegando mesmo a forçar Tirésias a declarar os oráculos depois de tê-lo até insultado. Conferindo ao momento mais intensidade, Tirésias termina por declarar:


Acaso sabes de quem procedes? Pois, sem que o saibas, és um inimigo para os teus, tanto para os que já estão sob a terra, como para os que vivem sobre ela. Uma maldição de dois gumes, a de teu pai e a de tua mãe, te há-de arrastar para fora desta terra no seu terrível passo, a ti, que agora, vês bem e dentro em pouco só verás a treva. [9]

Lacan no Seminário A Ética comenta que Tirésias, tanto quanto Homero, sabia que só quem escapa às aparências pode alcançar a verdade. Lacan, aqui, faz relação com a ‘cegueira’ daquele que diante de um luto absoluto, como sabemos que é o de Édipo, consegue continuar e seguir buscando a chave de seu enigma. O desejo de desejar que Édipo experimenta é vivido de uma forma surpreendente, e diríamos, também, intensa. Cito:


Se ele se arranca do mundo pelo ato que consiste em cegar-se, é que somente aquele que escapa das aparências pode chegar à verdade. Os antigos sabiam disso – o grande Homero é cego, Tirésias também. [10]

Parece-nos que Sófocles constrói, nesta tragédia sobre a condição humana, uma espécie de ‘lucidez’ “que suspende a limitação da consciência normal (que depende de distinções determinadas)” [11]. O que a fábula ou o cenário trágico nos apresenta, então, diz de um sentimento de liberdade e de contradição do subjetivo e do objetivo que o “herói trágico é (como dirá também Hegel) ‘ao mesmo tempo culpado e inocente’, lutando contra o invencível, ou seja, lutando contra o destino que é o próprio responsável por sua falta,” [12] provocando uma derrota inelutável e necessária da qual ele só sairá “pela perda da própria liberdade” [13].

Os estudiosos desses mitos reconhecem tanto no texto da tragédia de Antígona quanto no de Édipo, o uso de aspectos importantes da linguagem e descobrem as relações e os não-ditos em “pólos extremos da piedade e da selvageria” [14] como parte de um mesmo mundo. Em Antígona, Sófocles deixa ver nos gestos e palavras da personagem “os deslizes desconcertantes das suas afirmações” [15]. Antígona passa, por exemplo, do argumento à imaginação. Às vezes, faz uso de uma argumentação impecável e a seguir desliza para afirmações provocantes.

E na errância, aonde Édipo se lançará, encontramos alguns outros pontos importantes. De fato Édipo, que antes vivia de forma segura, passa a mover-se nas trevas em direção ao (im)possível das certezas. Será nesse caráter do nosso herói, e no jogo de significantes de luz e treva, que podemos perceber o que Freud nos apresenta na reconstrução deste mito na psicanálise: a presença de um ‘saber’ que se constrói em tempos distintos da constituição de qualquer sujeito.

O inconsciente pisca e nos aponta, aos poucos, a direção que alerta alguma ‘verdade’ para cada e qualquer sujeito em análise, dentro de um caminho a desvendar. Podemos afirmar ainda que, quando lemos, inúmeras vezes, as tragédias de Édipo, sempre teremos a oportunidade de encontrar a complexidade e o insondável da natureza do homem, e um estado de desamparo no qual o sujeito apresenta seu não saber.

Philippe Lacoue-Labarthe, estudioso das traduções hölderlianas, reconhece em Antígona “a mais grega das tragédias” [16] no sentido do ‘mais lírico’, e também da obra onde Sófocles se mostra de fato “mais próximo de Píndaro“ [17]. Ele ainda comenta que a tradução feita por Hölderlin deixa o discurso dos gregos bem perto de nós, e não porque diga tudo. Especialmente, pelo que não diz (no sentido de que vai dizer de maneira diferente).

A queixa de Antígona surge como um lamento “com respeito a tudo o que da vida, lhe foi recusado” [18]. Com as considerações de Lacan observamos de onde Antígona fala; deste lugar de quem já perdeu a vida, mas também de onde pode vivê-la na forma do que já foi perdido. Lembramos que ela foi condenada a morrer aos poucos dentro de uma tumba de pedra, ou seja, enterrada viva.


Solange Rebuzzi. Entre os Ensaios estão textos publicados nos sites da Revista de Poesia e Cultura Sibila, e Revista Critério, ambas editadas em São Paulo.

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