quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Artaud e a reinvenção do teatro europeu

Lucila Nogueira

. Eu vim ao México fugido da civilização européia.
...Contrariamente ao que todos foram levados a crer, os povos anteriores a Colombo eram estranhamente civilizados.
Antonin Artaud

Contra um conceito de cultura adstrito à mera escrita livresca e à erudição racionalista, contra um teatro ancorado de forma dependente nos andaimes da palavra e esquecido de sua gestualidade sacra original, a favor da recuperação dos manas que dormem nas coisas e dos nervos que acordam os homens, na busca de um estado anterior à linguagem oral articulada, pleno de atitudes e de signos, onde os sons tem a força de encantações: essa a força da contribuição, no século XX, do maldito Antonin Artaud (4 de setembro de 1896) para o teatro contemporâneo.

Um teatro com dança, gritos, sombras, iluminação, pouco diálogo e muita expressão corporal, a contestar o teatro naturalista francês, que se mostrava muito retórico e completamente subordinado ao texto. Uma compreensão da linguagem para além da simples transmissão de significados, para além do paradigma apenas psicológico instaurado no teatro a partir de Eurípides, em que a encenação é apenas suporte e ornamento dos diálogos humanos; a cena, apenas a superfície passiva onde transcorre o drama.

Uma visão do diretor como verdadeiro hierofante e mestre mágico a oficiar o sagrado. Adeus à noção do teatro como entretenimento e simulação, encontro social sem rito ou cerimonial - trata-se agora de viver o teatro como uma pulsão onde o corpo transcende o humano em direção à divindade.

Essa idéia de contraposição do teatro oriental ao ocidental surge em Artaud a partir da apresentação de um grupo de teatro de Bali, em que a dança está sempre presente, assim como a ênfase nas expressões faciais, mimese de um processo cósmico em que o ator oferece seu corpo à divindade e ao espectador, ritual de um templo que aproxima o mundo divino como uma espécie de yoga.

Não estava muito longe a visão do poeta como um sacerdote, peculiar ao romantismo alemão; inclusive, a partir de Wagner o teatro passa a ser pensado de modo antropológico. Na seqüência da evolução dessa ruptura com o tradicional teatro da palavra, vai surgir o teatro do corpo: não que renuncie completamente ao texto, mas que o incorpora com um dos elementos do processo de criação; um teatro que busca sair da mimese e do espetáculo para se constituir em um modo de viver, pois o ator deixa de ser apenas um intérprete e pactua da própria inauguração artística.

A ênfase na ação física do corpo também será encontrada em outros teóricos importantes do teatro como Stanilavski, Meyerhold, Piscator, Reinhardt, Jacques Copeau, Grotowski. Posteriormente no Brasil, Augusto Boal com seu Teatro do Oprimido, de ideologia brechtiana, também irá transformar o espectador em protagonista.

Entretanto, observa-se que a proximidade de Artaud com a dramaturgia alemã do século XIX (Woyzeck, de Büchner) e o mencionado gosto pelos seus românticos (Kleist, Hölderlin) irmãos de maldição e vítimas dos “enfeitiçadores”, como de resto o foram os franceses Baudelaire e Nerval, o holandês Van Gogh.

A considerar-se que há também afinidade de Artaud com Nietzsche (valorização do corpo e exaltação dos valores vitais face aos da razão intelectiva - escreve com o sangue), vemos que existia na própria Europa uma recusa ao teatro psicológico e naturalista, própria do clima que favorecera as vanguardas.

Daí podermos considerar como integrantes dessa linhagem à qual pertence Artaud: os futuristas (teatro circular e desprezo à imitação), os dadaístas (ritual coletivo com atores improvisados que se descobrem a si mesmos e ao público), os surrealistas (invasão soberana do inconsciente), Adolphe Appia (eliminação da diferença palco/platéia; a base é sempre o gesto), Edward Gordon Craig (o dançarino foi o pai do dramaturgo, a dificuldade do teatro foi a sua anexação à escrita porque ele não é um gênero literário), Tairov (rejeição à submissão do teatro ao texto escrito), Fuchs (fazer do teatro a alma da multidão), Evreinov (teatro como meio de ultrapassar a morte), Vakhtangov (como Stanislavski, lutou por um teatro não discursivo), Syrkus (teórico do teatro simultâneo), Walter Gropius autor do projeto de teatro total bastante relacionado ao espetáculo giratório de Artaud)... Etienne Decroux, Ghelderode, o ator Conrad Veidt, para não falar de Sade, Fargue, e sobretudo da Cabala, em que um dos principais ensinamentos é atentar para o valor sonoro e não semântico das palavras (Alain Virmaux, 1990).

Se na Europa já existia, portanto, um caminho trilhado nessa direção, o que haveria de conferir a Artaud o perfil de grande visionário do teatro no século XX? Desejando vivenciar seus próprios símbolos e mitos, ele consegue em 1936 uma bolsa e vai pesquisar os índios tarahumaras no México, passa quase um ano estudando antropologicamente o ritual do peyote, acreditando na cultura indígena como resgate de uma percepção do mundo que o ocidente dera por perdida.

Também Malcom Lowry estaria em terras mexicanas por duas vezes e escreveria Debaixo do Vulcão; o sonho de despir-se Artaud da identidade de civilizado leva-o a alcançar um estado poético absoluto, onde caem por terra as estruturas arcaicas da linguagem, onde a retórica é inútil e a beatitude ultrapassa a reflexão.

Também a identidade acha-se roubada ao eu pelo outro e Artaud guarda esse dilema, porque cada um carrega consigo o seu Lautréamont, o seu Hölderlin, o seu Strindberg, o seu Nietzsche, e eles são irredutíveis, até o fim da solidão (Joski). Daí a tentativa do teatro de Artaud de fixar a alteridade, desde o etnográfico ao metafísico; do questionamento da superioridade da Europa sobre os povos colonizados à crítica da superstição do texto em face da explosão da vida: indagando onde radica a justificativa que um continente pode ter para servir-se de outro, Artaud opõe a tirania dos colonizadores à profunda harmonia dos colonizados e evoca Montezuma, rei dilacerado, o das paredes de ouro cobiçadas pelos brancos invasores.

Quando retorna à Europa, vai fazer uma peregrinação nos locais sagrados da cultura celta, aquela que foi derrotada historicamente pelos romanos; a partir daí é deportado para a França (setembro de 1937), por se encontrar sem recursos e em estado de grande exaltação.

Tem sido constante a consideração dos gênios como dementes, loucos ou visionários. Veja-se Blake, Goya, Van Gogh, Rimbaud. Nietzsche foi oficializado doente ao chorar em praça pública diante do chicoteamento de um cavalo.

Exige-se socialmente uma normalidade com características de controle e objetividade. Mas a mente humana é passional, infantil, inocente. A crítica do conceito de espetáculo de Artaud expulsa a arte do teatro como falsidade, defendendo a união entre a poesia, a filosofia, o grito, a biografia em um único ato: escrever é o mesmo que viver, desaparecendo a cisão entre vida e obra.

Lembra Claudio Willer que as suas propostas sobre teatro são hoje práticas correntes: a criação coletiva, a improvisação em cena, o primado do gestual e da expressão corporal, união palco e platéia, o happening, a performance; as correntes de pensamento da chamada contracultura são de alguma forma um legado de Artaud; também os estudos sobre a relação entre o corpo e a consciência, bem como a devoção que lhe dedicou o grupo reunido em torno da revista Tel Quel, tudo sinaliza para essa postura de rebelião radical que se recusa a compactuar com a violência absurda da civilização ocidental, e deu ensejo à geracão beat americana (Guinsberg, Burroughs, Kerouac) bem como ao movimento hippie dos anos sessenta, seguido por manifestações mais radicais como os punks, pós-punks e diversos tipos de orientalismo ocidental cotidiano.

O seu exemplo atua como símbolo icônico de sua plataforma: ele vai viver o que predica, é ator de seu próprio personagem. Para esses casos, a sociedade não está nunca preparada: será trancafiado em clínicas até 25 de maio de 1946, sempre escrevendo muito e na verdade a sua produção principal. A acreditar em Foucault, segundo o qual onde há obra não há loucura, se tivesse família a ela caberia propor uma ação de indenização por internamento.

Mas Artaud não tinha ninguém, só os seus amigos que ainda sem as prerrogativas do sangue conseguiram tirá-lo do excessivo rigor de Rodez, já próximo de sua despedida (4 de março de 1948). Diagnósticos: câncer no reto; envenenamento por doses de heroína e morfina; suicídio. Desde os 24 anos tomava láudano para aliviar suas dores de cabeça, tinha convulsões, havia estado em clínicas na juventude.

No período mais longo de internamento, já na maturidade, sofreu, como terapia psiquiátrica, mais de cinqüenta sessões de eletrochoque, cuja violência denunciou com muita coragem.

Importa lembrar que o choque eletroconvulsivo (ou ECT) é utilizado como terapia por Ugo Cerletti e Lucio Bini justo em 1937, ano da internação de Artaud ao regresso da Irlanda; foi bastante divulgado em 1939 na Europa pelo alemão L. B. Kalinovski; foram submetidos a sessões de eletrochoque os escritores americanos Ernest Hemingway e Sylvia Plath (ambos se suicidaram).

Dizem que uma mente que passa por eletrochoques não se reintegra com facilidade, daí haver originado posteriormente à época de Artaud muitos processos por parte de pacientes; em 1962, Ken Casey escreve um romance baseado na sua experiência em um hospital psiquiátrico de Oregon, que Milos Forman transformaria no filme Um Estranho no Ninho; em 1970, a terapia estava derrotada pelos comprimidos antidepressivos.

No Brasil, contudo, recentemente, Austregésilo Carrano Bueno escreve o livro Canto dos Malditos, também baseado em sua experiência de paciente interno submetido a eletrochoques, que foi transformado em filme por Laís Bodanzy, com o título de Bicho de Sete Cabeças. Um poema de Antonin Artaud denuncia a violência dessa terapia até hoje defendida (às vezes secretamente) por psiquiatras pós-graduados:

Passei nove anos num asilo de alienados.
Fizeram-me ali uma medicina que nunca deixou de me revoltar.
Essa medicina chama-se eletrochoque
, consiste em meter o paciente num banho de eletricidade
fulminá-lo
e pô-lo bem esfolado a nu
e expor-lhe o corpo tanto externo como interno
à passagem de uma corrente
que vem do lugar onde não se está
nem deveria estar
para lá estar.

O eletrochoque é uma corrente que eles arranjam sei lá como,
que deixa o corpo,
o corpo sonâmbulo interno,
estacionário
para ficar sob a alçada da lei
arbitrária do ser,
em estado de morte
por paragem do coração.

Durante o tempo em que passou internado, Artaud demonstrou estar em plena posse de sua escrita. Denunciou as clínicas psiquiátricas como cárceres onde os internos provém mão-de-obra gratuita, onde a brutalidade é norma. Assim se dirigiu em sua "Carta aos Diretores de Manicômios":

As leis, os costumes lhes concedem o direito de medir o espírito. Esta jurisdição soberana e terrível, vocês a exercem com o seu entendimento. Não nos façam rir. A credulidade dos povos civilizados, dos especialistas, dos governantes, reveste a psiquiatria de inexplicáveis luzes sobrenaturais. A profissão que vocês exercem está julgada por antecipação. ...Todos os atos individuais são anti-sociais. Os loucos são as vítimas individuais por excelência da ditadura social. .... Sem insistir no caráter verdadeiramente genial das manifestações de certos loucos, na medida de nossa aptidão para apreciá-las, afirmamos a legitimidade absoluta de sua concepção de realidade.

Aos 110 anos de seu nascimento só a poesia pode ter voz ao grande mestrestético e humano autor de um ensaio tão clarividente e profético como Van Gogh, o suicidado pela sociedade:

Artaud

a Europa se esgotou

e tu vieste à América dos tarahumaras primitivos

dançando a força de seus rituais

até chegar ao estágio da visão.



Você queria entender o sol

participar do transe de secretas ordenações

como se tudo fosse uma espécie de lição



e agora alguma coisa te restitui

ao que existe do outro lado de ti

aprende Artaud

a reconhecer os sinais

os deuses nos contemplam dos rochedos

e eles nada pedem

só o físico sobrenatural

só a matéria de tua pele

em carne viva desde sempre

a refletir um sonho que se vai



agora conheces os que curam através do sonho

e sabes que um branco é apenas um homem

que os espíritos abandonaram



agora sabes das cruzes com os espelhos amarrados entre dois sóis

raiz hermafrodita

labareda

faz teu apelo às forças obscuras



Artaud

grande mestre curandeiro

o rito da aurora negra

na noite eterna do sol.


Lucila Nogueira (Brasil,1950). Poeta, ensaísta, contista, tradutora. Tem dezessete livros de poesia editados e diversos artigos de crítica literária em revistas do Brasil e Portugal. Publicou os ensaios A Lenda de Fernando Pessoa (2003) e Ideologia e Forma Literária em Carlos Drummond de Andrade (2002, 3ª ed.). Tem, inéditos, Oralidade e Folclore Nordestino na Poesia de Ascenso Ferreira e O Cordão Encarnado, sua tese de doutorado sobre João Cabral de Melo Neto. Contato: lucnog2@yahoo.com. Página ilustrada com obras do artista Rafael Charco Portillo (México).

Apolíneo vs Dionisíaco

Na apresentação do apolíneo encontramos a racionalidade e a ilusão num jogo perigoso orientado para os valores da Verdade, do Belo e do Justo. Por seu lado, o dionisíaco não é simplesmente uma oposição posterior a essas tendências civilizacionais. Pelo contrário, o dionisíaco é o outro impulso fundamental que rege o devir em que sempre está em jogo o limite dos indivíduos. O dionisíaco é o instinto de força e de luta, de desequilíbrio. O desequilíbrio resulta das próprias regras do jogo em que os indivíduos estão sempre envolvidos. A vida implica um confronto entre limites individuais. Este confronto é primevo, não está regulado por qualquer vontade boa ou justa, racional ou misericordiosa.

No homem dionisíaco está viva a consciência do apolíneo como convencional, como uma ilusão da perspectiva do indivíduo. Para o homem dionisíaco, as criações apolíneas não passam de acontecimentos de superfície.

O artista apolíneo almeja a bela aparência, a boa ilusão que se encobre de o ser. Representa figuras bem delimitadas na sua individualidade, puras na sua beleza, caracterizadas pelo equilíbrio e pela harmonia. O artista apolíneo representa todos os valores tradicionalmente reconhecidos aos gregos. O criador dionisíaco exacerba a dissolução do indivíduo, a desmesura, o exagero.

Wikipedia

Audrey Hepburn: Intimate Portrait

Etta James

Billie Holiday - I` m a fool to want you

Fernando Pessoa - Por Ferreira Gullar


Fernando Pessoa
A razão poética
(in Folha de São Paulo, Caderno Mais!, 10.11.96)


Ferreira Gullar analisa os heterônimos de Pessoa e contesta que eles sejam personagens teatrais, como defendeu o próprio poeta


Há 61 anos morria, em Lisboa, Fernando Pessoa, cuja obra, por sua complexidade e beleza, deu novo sentido e novo peso à literatura de língua portuguesa. Falar desse poeta e dessa obra equivale a mergulhar num atordoante labirinto de espelhos. O que é previsível, quando se lê o que ele mesmo disse em carta a João Gaspar Simões: "O estudo a meu respeito, que peca só por se basear, como verdadeiros, em dados que são falsos por eu, artisticamente, não saber senão mentir". Pode-se entender esse reparo como uma advertência, pertinente, aos críticos que costumam explicar a obra dos escritores por sua biografia. De fato, se em todo autor obra e vida de algum modo se entrelaçam ou se ligam, deve a crítica ter em conta que se trata de realidades diferentes, de linguagens diversas, que não se traduzem uma na outra. Sendo assim, o mesmo fato não terá igual significação na vida como na obra, ou seja, devemos ler a obra como obra e a vida como vida. Sem confundi-las.

No caso de Fernando Pessoa, porém, a dificuldade está na leitura da obra de um autor cuja vida parece se resumir à própria obra e que, ao mesmo tempo, põe em dúvida a cada momento a sua existência como gente e como autor da obra. Mas tampouco o faz de modo definido ou definitivo.

Assim abre diante de nós um labirinto de dúvidas e simulações:

"Se alguma vez sou coerente -diz ele-, é apenas como incoerência saída da incoerência"; ou então: "A origem mental dos meus heterônimos está na minha tendência orgânica para a despersonalização e para a simulação". Noutra ocasião afirma:

"Eu sou a sensação minha. Portanto, nem da minha própria existência estou certo".

Se nos detemos a analisar essa última frase, verificamos que ela é carente de lógica: se eu sou uma sensação minha, não posso ter dúvida quanto a minha existência, já que, para haver sensações, é necessário que haja alguém que as tenha. Trata-se, portanto, de um paradoxo. Mas a nossa lógica de pouco ou nada vale para contestar ou definir a alguém que, como Pessoa, nos responde: "O paradoxo não é meu. Sou eu".

E é verdade. Ou deve ser... talvez. Fernando Pessoa parece ter tido, desde sempre, enorme dificuldade em manter-se coerente.

Ele confessa: "Todos os meus escritos ficaram inacabados: sempre novos pensamentos se interpunham, associações de idéias extraordinárias e inexcludíveis, de término infinito". Há nele uma espécie de horror ao definido e ao definitivo: "Não posso evitar o ódio que têm meus pensamentos de ir até o fim: a respeito de uma simples coisa, surgem dez mil pensamentos e milhares de interassociações com esses dez mil pensamentos, e careço de vontade de eliminá-los ou detê-los, nem tampouco de reuni-los num pensamento central, onde os seus pormenores sem importância, mas associados, podem se perder. Introduzem-se em mim: não são pensamentos meus, mas pensamentos que passam através de mim. Não pondero, sonho; não me sinto inspirado, deliro".

A coerência impossível.


Pode-se deduzir dessa confissão que a impossibilidade de se manter coerente decorre, em Fernando Pessoa, de um lado de sua inteligência extraordinariamente rica e sensível e, de outro, de uma fraqueza ou indecisão fundamental que o impede de eleger a linha mestra do raciocínio e expurgar tudo o que, por mais interessante ou brilhante que seja, não pertença a ela.

Outra hipótese seria a de que ele subestima a coerência lógica em favor do efeito emocional das idéias e porque encontra na própria incoerência uma expressão emocional ou um perverso prazer intelectual. Não se pode esquecer que, entre as múltiplas faces da personalidade de Pessoa, há sem dúvida a de um certo esnobismo intelectual, o esforço para fugir do comum. Ele o diz pela boca de Bernardo Soares, o "autor" do Livro do Desassossego: "Repudiei sempre que me compreendessem. Ser compreendido é prostituir-me. Prefiro ser tomado a sério como o que não sou". Se se alega -como poderia fazê-lo o próprio Pessoa- que o que diz Soares, diz Soares, e não ele, Pessoa, podemos também lembrar-lhe outra de suas afirmações: "Só disfarçado é que sou eu". Definir Pessoa é como tentar fixar as imagens de um caleidoscópio em movimento.

Não obstante, nunca se pode descartar, no entendimento desse fenômeno -que se confunde com uma espécie de dispersão da personalidade-, causas verdadeiras, existenciais e até psíquicas, especialmente quando atentamos para afirmações como esta: "O caráter de minha mente é tal que odeio os começos e os fins das coisas, porque são pontos definidos. Aflige-me a idéia de que se descubra uma solução para os mais altos e mais nobres problemas de ciência e filosofia; horroriza-me a idéia de que uma coisa qualquer possa ser determinada por Deus ou pelo mundo.

Enlouquece-me a idéia de que as coisas mais momentosas possam realizar-se, de que os homens pudessem todos ser felizes um dia, de que se encontrasse uma solução para os males da sociedade".

E, após dizê-lo, adverte: "Contudo, não sou mau nem cruel; sou louco e isso dum modo difícil de conceber".

Não nos cabe aqui fazer o diagnóstico médico de Fernando Pessoa. Ele, sim, tenta fazê-lo numa carta a dois psiquiatras franceses, datada de 10 de junho de 1917, em que afirma: "Do ponto de vista psiquiátrico, sou um hístero-neurastênico, mas felizmente minha neuropsicose é bastante fraca". E aduz logo adiante: "Exceto nas coisas intelectuais, onde cheguei a conclusões que tenho como firmes, mudo de opinião dez vezes por dia; só tenho juízo assentado a respeito de coisas em que não haja possibilidade de emoção". E isso porque, segundo ele mesmo admite, "a emotividade excessiva perturba a vontade; a cerebralidade excessiva -a inteligência por demais apaixonada pela análise e pelo raciocínio- esmaga e amesquinha essa vontade que a emoção acaba de perturbar", e acrescenta: "Quero sempre fazer, ao mesmo tempo, três ou quatro coisas diferentes; mas no fundo não só não faço, mas não quero mesmo fazer nenhuma delas. A ação pesa sobre mim como uma danação: agir, para mim, é violentar-me".

Se Pessoa era ou não um "hístero-neurastênico", não importa aqui. No trecho citado, interessam-nos mais as referências à "cerebralidade excessiva -a inteligência por demais apaixonada pela análise e pelo raciocínio"- e à impossibilidade de agir. Esses dados podem explicar sua tendência a negar a realidade concreta do mundo objetivo, o estado de permanente desencanto diante da vida e da criação de personalidades fictícias nas quais projeta a vida que ele próprio não consegue viver.

Homossexualismo irrealizado


Mas há um outro dado a acrescentar a esse quebra-cabeças: o homossexualismo irrealizado de Fernando Pessoa. Mais uma vez recorremos a suas próprias palavras: "Não encontro dificuldade em definir-me: sou um temperamento feminino com uma inteligência masculina. A minha sensibilidade e os movimentos que dela procedem, e é nisso que consistem o temperamento e a sua expressão, são de mulher. As minhas faculdades de relação -a inteligência e a vontade, que é a inteligência do impulso- são de homem". Adiante ele diz: "Reconheço sem ilusão a natureza do fenômeno. É uma inversão sexual fruste. Pára no espírito". Mas vejamos o que se segue: "Sempre, porém, nos momentos de meditação sobre mim, me inquietou, não tive nunca a certeza, nem a tenho ainda, de que essa disposição do temperamento não pudesse um dia descer-me ao corpo. Não digo que praticasse então a sexualidade correspondente a esse impulso; mas bastava o desejo para me humilhar".

Esse texto deixa claro a drástica reprovação de Pessoa à prática do homossexualismo (que ele considera humilhante), assim como o temor de que, contra a sua vontade, esse impulso lhe descesse ao corpo e o submetesse. "Somos vários desta espécie, pela história abaixo'', afirma, referindo-se em seguida a Shakespeare e Rousseau, para sublimar seu receio "da descida ao corpo dessa inversão do espírito", "como nesses dois desceu". Seria descabido imaginar que, diante dessa ameaça, diante desse corpo que poderia a qualquer momento traí-lo, que Pessoa decidisse não viver, reduzir sua vida à vida da inteligência (sua parte masculina), e assim escapar à desgraçada possibilidade de tornar-se um homossexual? Não seria essa divisão interior -um homem e uma mulher na mesma pessoa- o início de sua despersonalização, da divisão do eu e ao mesmo tempo da invenção de outras personalidades, em lugar da sua própria, que lhe era, por pervertida, inaceitável? Por outro lado, a necessidade de ocultar esse impulso perverso não seria a primeira simulação que o levaria a tantas outras simulações?

Podemos responder sim ou não a essas hipóteses. Mas mesmo que respondamos sim, não esgotaríamos com isso o mistério da obra poética de Fernando Pessoa nem o enigma de sua personalidade, que dessa obra não se separa, porque, qualquer que seja a causa que determina o nascimento de seus poemas e a criação do seus heterônimos, a significação poética e o valor literário de sua obra pairam acima das explicações.

Não vamos, portanto, indagar agora pela origem de seus heterônimos, mas tentar compreender o que são eles. Num texto conhecido como ``Apresentação dos Heterônimos'' e que foi escrito como prefácio a uma projetada edição de suas obras, em 1930, possivelmente, Pessoa afirma: "O autor humano destes livros não conhece em si próprio personalidade nenhuma. Quando acaso sente uma personalidade emergir dentro de si, cedo vê que é um ente diferente do que ele é, embora parecido" (...) "Afirmar que esses homens todos diferentes, todos bem definidos, que lhe passaram pela alma incorporadamente, não existem -não pode fazê-lo o autor destes livros; porque não sabe o que é existir, nem qual, Hamlet ou Shakespeare, é que é mais real, ou real na verdade."

O poeta dramático


Essa alusão a Shakespeare não é fortuita, por várias razões, mas especialmente porque Pessoa se entende como um "poeta dramático" e seus heterônimos como equivalentes a personagens teatrais. É bastante conhecido o trecho de sua carta a João Gaspar Simões em que ele se define como tal: "O ponto central da minha personalidade como artista é que sou um poeta dramático; tenho, continuamente, em tudo quanto escrevo, a exaltação íntima do poeta e a despersonalização do dramaturgo. Vôo outro -eis tudo".

Em consequência disso, diz ele, "não há que buscar em qualquer deles (dos heterônimos) idéias ou sentimentos meus, pois que muitos deles exprimem idéias que não aceito, sentimentos que nunca tive. Há simplesmente que os ler como estão, que é aliás como se deve ler". Argumenta com o exemplo do poema oitavo do ``Guardador de Rebanhos'', "que escrevi com sobressalto e repugnância", afirma, ``pois que ali Caeiro usa de blasfêmia infantil e antiespiritualismo, quando nem uso de blasfêmia nem sou antiespiritualista". E acrescenta: "Alberto Caeiro, porém, como eu o concebi, é assim: assim tem pois ele que escrever, quer eu queira quer não, quer eu pense como ele ou não. Negar-me o direito de fazer isto seria o mesmo que negar a Shakespeare o direito de dar expressão à alma de lady Macbeth, com o fundamento de que ele, poeta, nem era mulher nem, que se saiba, hístero-epilético, ou de lhe atribuir uma tendência alucinatória e uma ambição que não recua perante o crime. Se assim é das personagens fictícias de um drama, é igualmente lícito das personagens fictícias sem drama, pois que é lícito, porque elas são fictícias e não porque estão num drama".

Acredito que, para melhor entendermos o fenômeno dos heterônimos, devemos examinar esta tese de Fernando Pessoa, na qual ele insiste repetidas vezes e a que confere indiscutível importância, a ponto de considerá-la a chave para o entendimento de toda a sua obra.

De meu ponto de vista, a explicação dos heterônimos -se eles são apenas pseudônimos de um único poeta que é Fernando Pessoa ou se são de fato poetas autônomos que ele criou do mesmo modo que um dramaturgo cria seus personagens- não alterará a avaliação qualitativa dos poemas a eles atribuídos, mas é impossível falar da obra poética de Pessoa, como um todo, ignorando a existência desses personagens-poeta.

A leitura, não apenas dos textos explicativos produzidos por ele, como dos poemas de Caeiro, Reis e Campos, deixa evidente a complexidade desse fenômeno e seu alcance profundo na personalidade literária e humana de Pessoa. Pode-se dizer mesmo que a sua obra poética tanto se constitui dos poemas todos que escreveu como igualmente desses personagens, que ele usa para ser outros ou que o usam para serem eles mesmos. Por isso, tentar entender que relação efetivamente existe entre Pessoa e seus heterônimos é tentar entendê-lo com criador literário.

Apesar da insistência de Pessoa em se definir como "poeta dramático" e afirmar que seus heterônimos equivalem a personagens teatrais, ponho em dúvida essa sua tese. Para justificar minha discordância, volto à celebre carta a João Gaspar Simões, já citada aqui. "Desde que o crítico fixe, porém, que sou essencialmente um poeta dramático, tem a chave da minha personalidade, no que pode interessá-lo a ele, ou a qualquer pessoa que não seja um psiquiatra, que, por hipótese, o crítico não tem que ser. Munido dessa chave, ele pode abrir lentamente todas as fechaduras da minha expressão. Sabe que, como poeta, sinto; que, como poeta dramático, sinto despegando-me de mim; que, como dramático (sem poeta), transmudo automaticamente o que sinto para uma expressão alheia ao que senti, construindo na emoção uma pessoa inexistente que a sentisse verdadeiramente e por isso sentisse, em derivação, outras emoções que eu, puramente eu, me esqueci de sentir", escreve Pessoa, tentando com isso mostrar o mecanismo de sua criação como poeta dramático. Sucede que, a meu juízo, esse não é o mecanismo da criação dramatúrgica.

Vaga biografia


O dramaturgo parte de personagem já existente (na vida real ou na sua imaginação) ou parte de uma situação dramática. Seu objetivo não é transferir sentimentos para expressões alheias ao que sentiu, mas expressar as emoções implícitas nas mais distintas situações da vida e dar existência aos protagonistas desses dramas. Macbeth não é resultado de um momento de despersonalização de Shakespeare e sim da capacidade do dramaturgo de viver integralmente o personagem, tanto em seu caráter como na situação dramática em que ele se encontra. A criação dramatúrgica não implica a substituição do autor pelo personagem, já que este é, de certa forma, uma expressão da personalidade do autor, afirmação dele como dramaturgo. Isso não significa, porém, que o personagem não possua traços próprios e não goze de uma autonomia relativa. Macbeth é, antes de mais nada, um homem numa situação dramática. Por isso, o que ele diz é o que só ele pode dizer e naquele momento; ele ou alguém que tivesse o mesmo caráter e se encontrasse na mesma situação. Sublinho este ponto porque reside aí a diferença fundamental entre um personagem dramático e qualquer dos heterônimos de Pessoa. Os heterônimos têm uma vaga biografia e, quando "falam" (escrevem), não o fazem como produto de uma situação determinada, como ocorre com Hamlet ou Macbeth ou Júlio César.

Tomemos o exemplo de Macbeth que, acreditando numa falsa profecia, dera vazão a sua sede de poder e a seus instintos sanguinários, traindo, assassinando, oprimindo. Quando, afinal, odiado por todos, cercado pelos inimigos, percebe que a profecia falhou e sente que o mundo desmorona sobre sua cabeça, tem uma explosão de revolta: "A vida é uma história contada com som e fúria por um idiota, e sem sentido algum". Essa frase terrivelmente negativa só poderia brotar na mente de um personagem furioso como Macbeth e posto na situação desesperadora em que se encontra no final de sua história. Não se trata de uma reflexão teórica e genérica, mas de uma manifestação contingente, por isso mesmo dramática.

Certamente, para que Macbeth seja assim e diga o que diz, é também necessário que o dramaturgo seja Shakespeare e não Molière ou Racine. Mas quem fala ali é Macbeth, não é Shakespeare. Porque Macbeth existe como personagem de uma história, existe numa história, e age e pensa em função das situações com que se defronta, sua existência é muito mais palpável, mais consistente, do que a dos heterônimos, e sua independência, com respeito ao seu criador, também muito maior.

De fato, como o que se conhece da vida de Macbeth ou de Hamlet são situações-limite, cuja alta intensidade dramática as imprime a fogo em nossa memória, nós os conhecemos melhor do que a Shakespeare, de quem temos vagas referências biográficas.

Noutras palavras, o conhecimento que temos de Shakespeare não é dramático, é prosaico, biográfico, como o conhecimento que temos de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. E desse modo os papéis se invertem: Fernando Pessoa está mais vivo em nossa mente que seus heterônimos, porque dele, sim, temos um conhecimento dramático. Ele -e não Caeiro, Reis ou Álvaro de Campos- é que é o personagem com história e drama. Ele é que, aos cinco anos perde o pai, seis meses depois perde o irmão e, em menos de dois anos, ganha um padastro; ele é que vê morrer a avó, louca, e teme ele próprio enlouquecer; ele é que, desde cedo, percebe que não consegue viver; ele é que se sente como inexistente, como uma passividade que quase nada pode, a não ser se multiplicar em personagens fictícios; ele é que, homossexual que não se aceita, desiste de qualquer vida sexual; ele é que conhece a solidão e o vazio; ele é que conhece "a amargura essencial desta vida estranha à vida humana -vida em que nada se passa, salvo na consciência dela" e que, por isso, inveja o homem comum, normal, "que sente cansaço em vez de tédio e que sofre em vez de supor que sofre". Pode-se questionar se Fernando Pessoa era um poeta dramático, como ele se definiu, mas um personagem dramático, isso ele o foi seguramente.

A matéria poética


Por aí se vê que um personagem não precisa ser fictício para ser dramático, nem é essa condição que lhe empresta dramaticidade. Tampouco necessita, o personagem fictício, fazer parte de uma peça teatral. Alfred Prufrock, do célebre poema da Eliot, é um personagem dramático, como observa Edmund Wilson, porque nos é apresentado em situação dramática. Não é um heterônimo, nada se sabe dele além do que se deduz da própria leitura do poema, que é a expressão mesma de sua dramaticidade, um homem que envelhece solitário e que nunca ousou nada na vida, além de suas tímidas e frustradas fantasias.

Vê-se portanto que a relação de um dramaturgo com seus personagens não é igual à de Fernando Pessoa com seus heterônimos, mesmo porque estes não são a rigor personagens dramáticos. Isso não significa, porém, que não haja diferença entre Pessoa e os heterônimos, que eles não existam enquanto personalidades fictícias por ele criadas ou sejam fruto de mero capricho do poeta.

Não, os heterônimos são expressão necessária da personalidade de Fernando Pessoa, talvez que inicialmente como consequência de uma tendência à mistificação ou à simulação, conforme ele mesmo admite, mas que mais tarde tornaram-se parte essencial de seu universo intelectual, de sua elaboração da matéria poética. A novidade que é a criação dos heterônimos -fenômeno único na história da literatura-, longe de resultar de uma originalidade buscada, nasce das características especiais da personalidade de Fernando Pessoa e mesmo do que se poderia designar como suas deficiências.

É por não ter nunca certeza de nada, é por desconfiar da existência do mundo material à sua volta, por não distinguir firmemente as fronteiras entre o percebido e o pensado, por lhe parecer tão real -ou irreal- o que pensa quanto o que percebe sensorialmente, enfim, por não se saber quem é nem quantos é nem mesmo se é, por tudo isso ele se projetou nesses personagens fictícios, que usam de sua mente e de seu corpo para existir ou, pelo menos, para pensar e escrever. Mas se pode dizer também que é ele que os usa para assim assumir de modo efetivo as diferentes possibilidades de entendimento e indagação da existência que se oferecem à sua vertiginosa e comovida lucidez. Pode-se ainda encarar esses heterônimos com uma busca de alternativa para a visão desencantada e sofrida que se apreende nos versos de Fernando Pessoa-ele-mesmo:

``Com que ânsia tão raiva

Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora''
ou
``Sol frio dos dias vãos
Cheios de lida e de calma,
Aquece ao menos as mãos
De quem não entras na alma!''
ou
``Ditosos a quem acena
Um lenço de despedida!
São felizes: têm pena...
Eu sofro sem pena a vida''.


Esse sofrimento vazio, que não decorre das relações afetivas, das paixões e das perdas reais, esse sofrimento que dói mais por parecer fingimento que por parecer real, talvez encontre um consolo quando Pessoa se torna Alberto Caeiro e, na pele dele, vive uma vida menos doída. Como Caeiro, Pessoa aceita a realidade do mundo e se conforma com vê-la, sem se atormentar de indagações:

``Creio no mundo como um
/malmequer
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não
/compreender...
O mundo não se fez para /pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e
/estarmos de acordo
Eu não tenho filosofia: tenho
/sentidos...
Se falo na Natureza não é porque
/saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por
/isso,
Porque quem ama não sabe o que
/ama
Nem sabe por que ama, nem o
/que é amar...''


Alberto Caeiro é, assim, a manifestação de uma opção filosófica implícita na negatividade da visão de Fernando Pessoa: a descrença na possibilidade de, pela razão, compreender-se o mundo. Mas, em lugar de tal verificação conduzir ao desencanto ou ao desespero, conduz, em Caeiro, à aceitação tácita da realidade. O mundo existe, está aí, basta senti-lo, uma vez que "há metafísica bastante em não pensar em nada", e mesmo porque não há o que indagar, já que

Se Caeiro é a aceitação da vida sem pensar, Ricardo Reis é talvez a aceitação apesar do pensar. Para Caeiro, existir é um fato maravilhoso por si mesmo, e o mundo, que dispensa explicações, não terá tido nem começo nem terá fim, ou pelo menos não importa sabê-lo. Já Ricardo Reis sabe: sabe que o tempo passa e a vida é breve. Mas isso não o perturba:

"Mestre, são plácidas
Todas as horas
Que nós perdemos,
Se no perdê-las,
Qual numa jarra,
Nós pomos flores".


Mas os heterônimos, se são alternativas filosóficas, são também alternativas estilísticas, aliás, como coerente decorrência da visão de mundo que cada um deles esposa. Ricardo Reis -que intensificou e tornou "artisticamente ortodoxo o paganismo descoberto por Alberto Caeiro"- escreve com o distanciamento e a objetividade de um clássico, sendo ao mesmo tempo moderno na exploração consciente da linguagem como matéria semântica e sensorial:

"O rastro que das ervas moles
Ergue o pé findo, o eco que /oco coa,
A sombra que se adumbra,
O branco que a nau larga -
Nem maior nem melhor deixa a /alma às almas,
O ido aos indos. A lembrança /esquece.
Mortos ainda morremos.
Lídia, somos só nossos".


Já Álvaro de Campos não tem nem a tranquilidade saudável de Caeiro nem a indiferença olímpica de Reis: ele é sôfrego, ávido e passional. O que mais pesa nele é a sensorialidade, mesmo a sensualidade, o corpo. Se não se ilude quanto à inutilidade de tudo, tampouco se nega à força da realidade que lhe faz vibrar os nervos:

"E há uma sinfonia de sensações
/incompatíveis e análogas.
Há uma orquestração no meu
/sangue de balbúrdia de crimes.
De estrépitos espasmados de
/orgias de sangue nos mares.
Furibundamente, como um
/vendaval de calor pelo espírito
Nuvem de poeira quente
/anuviando a minha lucidez
E fazendo-me ver e sonhar isto
/tudo só com a pele e as veias!".


Como Pessoa, ele não tolera as verdades definitivas:

"A razão de haver ser, de haver
/seres, de haver tudo,
Deve trazer uma loucura maior
/que os espaços
Entre as almas e entre as estrelas!
Não, não, a verdade não!''.
E nada de conclusões:
``A única conclusão é morrer".

E por ser tão preso aos sentidos, ao corpo, é natural que nele se manifeste o lado feminino de Pessoa, que Pessoa, por temor, reprime:

"Os braços de todos os atletas
/apertaram-me subitamente
/feminino,
E eu só de pensar nisso desmaiei
/entre músculos supostos
Foram dados na minha boca os
/beijos de todos os encontros,
Acenaram no meu coração os
/lenços de todas as despedidas
Todos os chamamentos obscenos
/de gestos e olhares
Batem em cheio em todo o corpo
/com sede nos centros sexuais.
Fui todos os ascetas, todos os
/postos-de-parte, todos os como
/que esquecidos, E todos os pederastas
/-absolutamente todos (sem /faltar nenhum)
Rendez-vous a vermelho e negro
/no fundo-inferno da minha alma!
(Freddie, eu chamava-te Baby,
/porque tu eras louro, branco e
/eu amava-te,
Quantas imperatrizes por reinar
/e princesas destronadas tu
/foste para mim!)''.

Esse dado talvez faça de Álvaro de Campos um heterônimo mais perto de Pessoa que os outros, mais perto da pessoa de Pessoa. Mesmo porque, como o cidadão Fernando Pessoa -ao contrário de Caeiro e Ricardo Reis-, Álvaro de Campos é citadino, urbano, metropolitano, contemporâneo das usinas e da luz elétrica:

"A dolorosa luz das grandes
/lâmpadas elétricas da fábrica
Tenho febre escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera
/para a beleza disto.
Para a beleza disto totalmente
/desconhecida dos antigos".


Por isso, estilisticamente, ele é "moderno", "futurista", entusiasmado com as novidades da civilização industrial, como um discípulo de Marinetti, que introduz na linguagem poética as palavras desse admirável mundo novo. Louva o cheiro fresco da tinta de tipografia, os cartazes colados há pouco, ainda molhados, os ``vients-de-paraître'' amarelos com uma cinta branca, a telegrafia sem fio, os túneis, o canal do Pananá, o canal de Suez... Álvaro de Campos guia automóvel e faz disso matéria de poema. Nem Caeiro nem Reis seriam capazes de semelhante proeza.

Voltemos à questão do relacionamento de Fernando Pessoa com seus heterônimos. Se esse relacionamento não é o mesmo que o dramaturgo mantém com seus personagens — e estou convencido de que não é —, o surgimento dos heterônimos não foi motivado pela necessidade (própria dos dramaturgos) de dar carne e realidade a personagens e situações. De fato, eles apareceram numa espécie de manifestação mediúnica, conforme conta o próprio poeta:

"Médium, assim, de mim mesmo todavia subsisto. Sou, porém, menos real que os outros, menos coeso (?), menos pessoal, eminentemente influenciável por eles todos. Sou também discípulo de Caeiro, e ainda me lembro do dia —l3 de março de 1914—, quando, tendo 'ouvido pela primeira vez' (isto é, tendo acabado de escrever, de um só hausto do espírito) grande número dos primeiros poemas do 'Guardador de Rebanhos', imediatamente escrevi, a fio, os seis poemas-intersecções que compõem a 'Chuva Oblíqua' ('Orpheu 2'), manifesto e lógico resultado da influência de Caeiro sobre o temperamento de Fernando Pessoa".

Mesma alma e mesmo corpo


Por não terem nascido de situações dramáticas, alheias à vida do autor ou tomadas objetivamente como tais, como a maioria das criações dramatúrgicas, os heterônimos não se desligam de Fernando Pessoa, já que é nele, e não em alguma peça teatral, que eles existem. Não é próprio da criação teatral esse coabitar dos personagens com o autor na mesma alma e no mesmo corpo, senão durante a concepção da peça. Escrita a peça, os personagens —esses fantasmas— abandonam o autor e se transferem para o texto escrito. O autor, por assim dizer, realiza desse modo um exorcismo: livra-se deles.

Os heterônimos, no entanto, jamais abandonam Pessoa, jamais se transferem para seus poemas que, por não serem peças teatrais, não os cabem, não têm neles suas situações de vida. Noutras palavras: os poemas são obras escritas pelos heterônimos e não o lugar em que transcorre sua vida. Eles não habitam os poemas, porque ninguém habita poemas. Eles habitam Fernando Pessoa. Convivem com eles, discutem com ele, misturam sua voz à dele, o influenciam. São portanto parte de Fernando Pessoa e compõem a sua personalidade contraditória e multiforme. Que Pessoa projeta e realiza neles tendências e qualidades pessoais está dito na carta de 13 de janeiro de 1935 a Adolfo Casais Monteiro. Pessoa escreve: "E contudo —penso-o com tristeza— pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida".

Ocultismo e visão olímpica


Nada nos autoriza, porém, a afirmar que os heterônimos "são" Fernando Pessoa, uma vez que ele pensa diferente deles1 e, em certas questões, o contrário deles. Dou como exemplo a carta a Marinetti, datada de 1917, em que ele diz que os sentidos só buscam "a razão física, exterior, superficial e empírica", e não a razão metafísica, "que só se descobre pelo pensamento puro, numa pureza inteiramente emocional", Com essas afirmações, Pessoa nega de uma única assentada tanto a visão de Caeiro ("pensar é não compreender") como a de Álvaro de Campos, cujo sistema está "baseado inteiramente nas sensações".

A adesão de Pessoa ao ocultismo contradiz inteiramente a visão olímpica de Ricardo Reis, como também a de Álvaro de Campos —voltado para o dinamismo da vida moderna— e a de Caeiro, para quem "o único sentido íntimo das coisas/ é elas não terem sentido íntimo nenhum". Outras tantas divergências entre Pessoa e seus heterônimos estão nas suas respectivas estatisticas.

Diante dessas constatações cabe perguntar: se os heterônimos não são expressão de situações existenciais específicas, dramáticas; se, portanto, não expressam visões contingentes ou geradas por situações próprias a eles (como Macbeth ou Hamlet) e, ao mesmo tempo, não expressam a visão de Fernando Pessoa, então por que eles os criou? Para contradizer-se? Para, por intermédio deles, manifestar suas contradições sem ter que assumi-las ou negá-las? Se não é por nenhuma dessas hipóteses, talvez reste apenas uma: ele os criou por razões poéticas e não por razões filosóficas; por razões afetivas, emocionais, e não por razões lógicas. Criou-os para exercer as múltiplas virtualidades de seu talento, que mal cabia numa só pessoa. E, por isso, talvez, mais correto séria chamá-lo —desculpem o trocadilho irresistível— Fernando Pessoas.


Ferrelra Guliar é poeta e ensaísta, autor de "Luta Corporal" e "Poema Sujo", entre outros.