domingo, 22 de janeiro de 2012

Pessoa e Shakespeare: fingidores invisíveis

Pessoa e Shakespeare: fingidores invisíveis
Como Shakespeare contribuiu para a invenção dos heterônimos do poeta português.

Por Mariana Gray de Castro em 21 de Março de 2011

Delfin

Para Fernando Pessoa, William Shakespeare é o supremo poeta dramático, cujo gênio reside na sua transformação do teatro convencional, de “enredo e ação”, numa “dramaturgia de almas e poesia”. Nessa avaliação, subscreve a visão Romântica de leitores como Goethe, Coleridge, Hazlitt e Keats, segundo a qual o “poeta-camaleão” (a imagem é de Keats) fica, no processo de criar assombrosas personagens como Hamlet e Próspero, desprovido de qualquer identidade.

Os modernistas colocam essa despersonalização total, quase sempre representada pelo exemplo de Shakespeare, no centro da sua teoria e prática literárias: Joyce visa ser tão invisível quanto “o Deus da criação”, uma biografia de Eliot tem como título O poeta invisível, e o heterônimo Álvaro de Campos informa-nos que “Fernando Pessoa não existe, propriamente falando.”

A ideia de que Shakespeare não existiria, literalmente (para além de literariamente), gerou no final do século XIX a teoria de conspiração de que ele seria o pseudônimo de outro escritor, ou outros escritores. Pessoa, que sempre afirmou existir mais plenamente na sua obra que em carne e osso, ao ponto de Jorge de Sena o chamar “o homem que nunca foi”, interessou-se de forma quase obsessiva pelo dito problema da autoria da obra shakespeariana, lendo dezenas de livros sobre o assunto, e escrevendo cerca de duzentos manuscritos, quase todos inéditos. Confrontou-se com a controvérsia, sobretudo nos dois ou três anos imediatamente anteriores à sua explosão nos heterônimos, em 1914.

Pessoa considera que Shakespeare é tão despersonalizado que consegue ser qualquer personagem que inventa: “Falstaff é Shakespeare tão verdadeiramente como Perdita, Iago, Otelo, Desdemona são Shakespeare”. Esse fingimento, sendo consequência da sua invisibilidade autoral e da sua habilidade em incorporar outras almas, não é insincero; é qualidade fundamental do seu gênio dramático. Explica que o mesmo se aplica à sua própria arte numa carta de 1915, na qual recorre ao exemplo do seu maior ídolo literário:

Mantenho, é claro, o meu propósito de lançar pseudonimamente a obra Caeiro-Reis-Campos. Isso é toda uma literatura que eu criei e vivi, que é sincera, porque é sentida [...] nas almas dos outros.

O que eu chamo literatura insincera não é aquela análoga à do Alberto Caeiro, do Ricardo Reis ou do Álvaro de Campos […]. Isso é sentido na pessoa de outro; é escrito dramaticamente, mas é sincero (no meu sentido grave da palavra) como é sincero o que diz o Rei Lear, que não é Shakespeare, mas uma criação dele.

Pessoa teria concordado com Oscar Wilde, outro escritor que influenciou em muito o seu pensamento sobre a mentira artística, que “censurar um artista por uma falsificação seria confundir um problema ético com um problema estético”, porque as “ditas falsificações são simplesmente o resultado do desejo artístico pela representação perfeita [...] uma tentativa de realizar uma personalidade num espaço imaginativo separado dos incidentes e das limitações da vida real.” Destacou estas palavras na margem do seu exemplar do livro de Wilde. Mas reconheceu que Shakespeare, muito antes, demonstrara como ninguém que “a poesia mais sincera é a mais fingida”, como afirma o sábio tolo de uma das suas peças. Pessoa faz da ideia de que o poeta é um fingidor a pedra angular da sua criatividade, servindo-se de Shakespeare para refletir, nos dois sentidos da palavra – para refletir como um espelho reflete, e para refletir no sentido de meditar – a invenção dos heterônimos


* Mariana Gray de Castro é formada em literatura inglesa e portuguesa pela Universidade de Oxford e King’s College, Londres. É pós-doutoranda nas Universidades de Lisboa e Oxford, onde foi várias vezes professora convidada. Está escrevendo um livro sobre Fernando Pessoa e Shakespeare.

Revista Pessoa

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